O doutor Viktor Frankl teve sua família inteira – à exceção de sua irmã – morta nos campos de concentração nazistas. Tamanho sofrimento não o impediu de escolher um caminho que desse sentido para sua vida, inclusive para todo esse sofrimento. A liberdade essencial que os seres humanos possuem é justamente a de escolher a atitude diante das circunstâncias encontradas na vida, por mais negativas que estas possam ser. No famoso livro Man`s Search for Meaning, Frankl faz um relato de sua experiência nos campos de concentração, assim como apresenta os principais pontos da logoterapia, sua criação psicoterapêutica cuja essência é justamente a busca do sentido existencial de cada indivíduo. A seguir, pretendo pular os detalhes dos horrores infligidos aos prisioneiros de Auschwitz, para tentar resumir a essência do pensamento de Frankl, cuja mensagem pode ser muito útil num mundo repleto de niilismo.
Diante das circunstâncias mais absurdas possíveis, Frankl compreendeu que a intensificação da vida interior ajudava o prisioneiro a fugir do vazio, da desolação e da pobreza espiritual de sua existência naquele inferno, onde sobreviver muitas vezes parecia uma péssima opção. Aqueles que se deixavam consumir pela apatia e pela sensação de que o mundo não faz sentido, após ser vítima de tanta injustiça e crueldade, costumavam durar menos. A postura diante daquelas terríveis circunstâncias fazia toda a diferença do mundo, tanto nas chances de sobrevivência como na forma de morrer – com ou sem dignidade. O que Frankl compreendeu foi que, mesmo rumo à morte provável, ele poderia ao menos dar algum sentido àquilo tudo. Sendo ele médico, ajudar os companheiros seria um propósito bem melhor do que simplesmente vegetar ou abandonar quaisquer esperanças de sair dali.
Claro que não é fácil tomar tal decisão, e o próprio Frankl lembra que, para julgar os demais, é preciso sinceramente tentar se colocar em seus lugares e perguntar se acha que faria diferente. Nessas circunstâncias mais extremas é que o verdadeiro caráter dos homens é testado. Seus valores mais básicos são colocados em dúvida, sob a influência de um mundo que não mais reconhece a vida humana e sua dignidade como valores. Mas se o homem não luta contra isso num último esforço de salvar seu respeito próprio, ele perde o sentimento de ser um indivíduo, um ser com uma mente, uma liberdade interior e um valor pessoal. Frankl afirma que “é muito difícil para alguém de fora compreender quão pouco valor era colocado na vida humana no campo”. Podemos apenas imaginar, já que aquelas pessoas eram tratadas como porcos. Neste ambiente, manter a individualidade deve ser uma tarefa hercúlea mesmo. No entanto, o fato é que alguns conseguiram, e isso faz toda a diferença.
As experiências nos campos de concentração mostraram que o homem é capaz de escolher mesmo nas situações mais aberrantes. Frankl conclui que o homem “pode preservar um vestígio de liberdade espiritual, de independência da mente, mesmo em tais circunstâncias terríveis de estresse psíquico e mental”. Tudo pode ser retirado do homem, menos uma coisa: sua liberdade de escolher a atitude em qualquer circunstância. Fundamentalmente, qualquer homem pode decidir o que será de si em termos mentais e espirituais. Ele pode manter sua dignidade mesmo no campo de concentração. E é justamente essa liberdade espiritual, segundo Frankl, que transforma a vida em algo com sentido, com um propósito. Ninguém pode tirar isso do indivíduo. O prisioneiro tinha diante de si uma oportunidade e um desafio. Era possível transformar aquele sofrimento numa vitória de sua força interior, utilizar aquelas experiências todas para seu crescimento pessoal, ou então ignorar o desafio e vegetar até morrer. Encontrar sentido no sofrimento foi a grande descoberta de Frankl. Viver significa sofrer também. E se a vida tem um sentido, então o sofrimento também deve ter. Frankl escolheu usar seu próprio sofrimento para se tornar uma pessoa melhor, para crescer por dentro. Transformar uma tragédia num triunfo pessoal pode ser um caminho para o sentido da vida.
A frase de Nietzsche, “aquele que tem um porque viver pode agüentar quase qualquer como viver”, é repetida com freqüência no livro de Frankl. Ao encontrar uma razão para viver, o homem parece disposto a encarar quase qualquer forma de vida. Esse motivo pode ser o amor por alguém, uma obra a ser realizada, ou qualquer meta que faça o indivíduo desejar continuar vivo, assumir a responsabilidade por sua existência e dar sentido a ela. Quem tem consciência do porque de sua existência, pode suportar quase qualquer coisa. Para Frankl, existem duas “raças” diferentes de pessoas: aquela de pessoas decentes e aquela de pessoas indecentes. Existem os dois tipos nos diferentes grupos da sociedade. A postura diante da vida, e também do sofrimento que dela faz parte, separa o joio do trigo.
De acordo com a logoterapia desenvolvida por Frankl, a busca pelo sentido da vida é a principal força motivacional dos indivíduos. O desejo de encontrar o sentido da vida contrasta com o desejo pelo puro prazer ou o desejo pelo poder. Alguns autores acreditam que esse sentido e os valores não passam de “mecanismos de defesa” do homem. Mas como o próprio Frankl coloca, ele não estaria disposto a viver apenas por conta dos seus “mecanismos de defesa”. Os homens são capazes de viver e mesmo morrer por causa de seus ideais e valores! Frankl considera o imperativo categórico da logoterapia a máxima “viva como se você estivesse vivendo já pela segunda vez e como se você tivesse agido da primeira vez tão errado como você está para agir agora”. Essa idéia desperta o senso de responsabilidade individual, convidando a pessoa a encarar o presente como um passado e, depois, compreender que esse “passado” ainda pode ser alterado. Quantas atitudes erradas nós podemos deixar de praticar através deste exercício simples!
O que incomodava Frankl na época em que o livro foi escrito, em 1946, ainda é relevante atualmente: o vácuo existencial que se tornara uma doença coletiva. No fundo, uma forma de niilismo, onde nada na vida parece ter qualquer sentido. Esse “fatalismo neurótico” é fortalecido por todas as crenças que negam a liberdade do homem. Claro que a vida é finita, e a liberdade é restringida por vários fatores externos. Não temos liberdade das condições, mas temos liberdade de reagir diante das condições. O homem não existe apenas, ele decide o que será de sua existência. Todo mundo tem a liberdade para mudar a qualquer instante. É uma questão de escolha, mesmo que graus distintos de dificuldade se apresentem por conta do ambiente. Um câncer terminal pode não ser mudado, mas podemos mudar como vamos enfrentá-lo. Os homens não são como máquinas. Aquilo que ele se torna, ele fez de si próprio!
A frustração existencial leva a todo tipo de fuga. Cabe a cada um decidir enfrentar os obstáculos e encontrar o sentido de sua própria vida. O mundo não é uma piada sem sentido, como os niilistas dizem. A forma como escolhemos agir faz toda a diferença no que somos. Freud acreditava que todos agiriam de forma uniforme diante da fome, com uma expressão igual de desespero por comida. Freud foi felizmente poupado do terror dos campos de concentração. Viktor Frankl não. E sua experiência pessoal mostra justamente o oposto: as diferenças individuais não desapareceram diante da fome extrema, criando uma reação uniforme; ao contrário, as pessoas se tornaram mais diferentes, suas máscaras caíram, “tanto dos suínos como dos santos”. Aqueles que conseguem reagir de forma digna mesmo diante de calamidades terríveis serão sempre minorias. Mas devemos lutar justamente para fazer parte desta minoria. Devemos dar o melhor de nós mesmos para viver com sentido, e não apenas sobreviver como máquinas vazias.
RODRIGO CONSTANTINO
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