Explicarei melhor aonde quero chegar. Na semana passada, meu amigo Marcos Augusto Gonçalves, que agora edita a Folha Ilustrada, pautou, co-escreveu e publicou uma interessante reportagem em que falava do surgimento de uma nova direita no Brasil. A crise que atingiu o PT estaria fazendo com que as pessoas perdessem o medo de declarar-se “de direita”.
Não entro no debate para afirmar ou negar que estejam ocorrendo mudanças na percepção do balanço de forças das correntes ideológicas nem discuto o mérito das figuras escolhidas para emblematizar a “nova direita”, algumas das quais prezo bastante. Meu objetivo é ao mesmo tempo mais simples e mais ambicioso. Pergunto-me se a dicotomia que divide a política em esquerda e direita faz sentido e, em caso, afirmativo, como definir esses conceitos.
Comecemos com um pouco de história. Tudo teve início na França do século 18, quando o rei Luís 16 –aquele mesmo que perderia a cabeça com a Revolução– se viu obrigado pelas circunstâncias a convocar os Estados Gerais, uma espécie de assembléia nacional ampliada. Provavelmente por acaso, os dois primeiros “estados”, isto é, a nobreza e o clero, se sentaram à direita da cadeira reservada ao rei. Ao terceiro estado, a burguesia, restou o lado esquerdo. Como nobres e padres defendiam e apoiavam idéias conservadoras, “direita”, por metonímia, passou a designar o grupo dos que se opõem a mudanças políticas; “esquerda”, por sua vez, passou a indicar os que são favoráveis a alterações.
Diga-se, “en passant”, que essa divisão nunca foi muito “justa” com a direita. Afinal, são muito poucos os que olham para o mundo tal como ele é, com todas as suas injustiças e pequenas e grandes perversidades, e concluem que não há nada a melhorar. Além disso, mesmo aqueles empenhados apenas em manter seus privilégios de classe sempre souberam que era preciso muitas vezes ceder. A essência desse pensamento foi captada na tão magistral quanto surrada fórmula de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, em “O Leopardo”: “Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi. Mi sono spiegato?” (”Se queremos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude. Fiz-me entender?”).
É claro que as coisas se sofisticaram um pouco dos anos 1780 para cá. Depois da profusão de correntes anarquistas e socialistas que surgiram e ganharam ímpeto no século 19, ser “de esquerda” passou quase que automaticamente pertencer a uma delas. Especularmente, todas as linhas de pensamento que não defendiam ou bem a revolução ou a transformação radical da sociedade por meio de mudanças na forma de organização social se viram colocadas no campo da direita.E as coisas só se complicaram depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e do ocaso da velha União Soviética, em 1991. O marxismo, é evidente, sofreu um tremendo de um baque. A idéia de revolução, se não foi sepultada, foi colocada num gelado gulag, onde permanece até hoje. Órfãos de uma teleologia, militantes da esquerda começaram a refazer seus cálculos políticos, de modo a encontrar aliados para seguir enfrentado aqueles que enxergavam como seus adversários do momento. Surgiram daí misturas improváveis, como a que juntou autoproclamados representantes da esquerda a grupos religiosos ou a tecnófobos antitransgênicos. O resultado é uma baita de uma confusão, pois nesse processo foram sacrificadas algumas das bandeiras tradicionais da esquerda, como o direito ao aborto e a confiança no progresso científico, hoje tomadas como teses “liberais” (pelo menos no Brasil, um outro nome para a direita).
Se quisermos salvar a distinção direita-esquerda, tarefa que se afigura árdua, precisamos antes de mais nada de um fundamento que vá além de banalidades do tipo conservador/progressista ou amigo/inimigo da mudança, que dizem pouco e explicam menos ainda. Acho que a melhor diferenciação já proposta é de teor filosófico, baseando-se no modo como cada lado avalia a noção de natureza humana.
O direitista clássico seria aquele que aposta numa natureza humana imutável e nada bonita. As pessoas têm forte inclinação a ser ruins, e tudo o que se pode fazer é tentar refrear pela força seus apetites naturais, de modo a tornar a convivência pelo menos possível. Leis rígidas e o apego a uma moral severa é só o que nos impede de decair na selvageria. A economia nada mais é do que a tradução em termos monetários e financeiros dos apetites humanos. Tudo o que tenda a alterar as inclinações naturais das pessoas está fadado ao fracasso.
Já para a esquerda, a natureza humana, se existe, seria pelo menos bastante maleável. O homem é o reflexo de seu ambiente, que pode ser alterado segundo projetos racionais. Obras de engenharia social e intervenções do Estado na economia são possíveis e desejáveis, de modo a tornar o mundo um lugar melhor, e as pessoas, mais felizes.
Não vou entrar no mérito das experiências históricas inspiradas por ambas as correntes. Basta dizer que regimes totalitários prosperaram sob as duas –o nazi-fascismo e o comunismo são exemplares– e o que de mais notável produziram foram pilhas e pilhas de cadáveres.
Alguns vêem nesses e em outros eventos históricos pouco abonadores para nossa espécie a prova insofismável de que a natureza humana é ruim, o que daria razão à direita. De minha parte, que sempre torci para a esquerda _assim como nasci e cresci corintiano, fui educado num lar de esquerda_, acho que precisamos matizar um pouco esse fatalismo.
Não há dúvida de que o homem pode ser profunda e visceralmente mau. Freqüentemente o é, mas nem sempre. É verdade que um miliciano hutu pode mutilar uma criancinha tutsi em Ruanda apenas “por prazer”, para ver como ela fica sem seus membros, mas, ao mesmo tempo, encontramos também povos vivendo em relativa harmonia e prosperidade, como os escandinavos hoje. A menos que acreditemos que a diferença nas atitudes sociais entre um sueco e um ruandense seja dada pela genética –e a simples lembrança das barbáries cometidas pelos vikings na Europa ocidental durante a Idade Média prova que não é–, torna-se forçoso concluir que fatores ambientais têm algo a ver com a diferença de comportamento. Ainda que exista uma natureza humana nada apreciável, parece haver também circunstâncias sociais que exacerbam ou contêm nossas piores tendências. Quais são essas condições e como reproduzi-las é uma questão em aberto. De minha parte, custa-me crer que elementos como educação, repartição das riquezas e a sensação de não ser vítima de injustiça não contribuam para evitar situações como a de Ruanda.
Em tempos nos quais tudo é especialmente confuso e conceitos que nos foram familiares como o de direita e esquerda parecem perder o sentido, julgo oportuno tentar resgatá-los, ainda que para defini-los em outros termos. Não será recorrendo à noção de natureza humana que conseguiremos salvar teses ou teorias políticas em particular, mas repensar velhas idéias sob um novo ângulo é um exercício normalmente útil.
Quanto à esquerda, parece-me precipitado decretar sua morte. É claro que praticamente todas as previsões que Marx, os socialistas e os anarquistas fizeram se revelaram grandissíssimos equívocos, mas isso não significa que a humanidade resista todo o tempo aos apelos da razão.
Ao final da Idade do Bronze, um ser humano vivia em média 25 anos. Sucumbia a doenças, predadores e à violência de seus pares. De lá para cá, aprendemos a organizar-nos um pouquinho mais racionalmente e hoje ultrapassamos facilmente as sete décadas de vida em condições algo mais favoráveis. Encontramos meios de moldar a natureza (não sem efeitos colaterais deletérios) e até de curar algumas doenças que nos acompanhavam desde que descemos das árvores. Parece-me prova suficiente de que o homem é capaz de aprender com a observação do meio que o cerca e de oferecer respostas racionais a problemas sociais concretos. Diria até que, ao longo da história da espécie, que se mede na escala das dezenas de milhares de anos, dedicou-se a essa atividade com bastante sucesso. Assim, pelo menos à luz da definição proposta, é cedo para assinar o atestado de óbito da esquerda. [Folha Online, Pensata, 23/2/2006]
Mais Merda :
AQUI
AQUI
AQUI