Nessa época, onde a transitoriedade e a pressa se acentuam, a avalanche dos fatos não finca raízes, não se fixa na memória já curta dos homens. No caso brasileiro, não só o desconhecimento de nossa história, mas a indiferença ao que se passa no turbilhão de acontecimentos recentes faz de nós desmemoriados culturais. Entre uma semana e outra, entre uma Veja e a próxima, tudo é esquecido mesmo por aqueles que cultivam o raro hábito de ler jornais e revistas.
A amnésia coletiva que inclui letrados e iletrados aprofunda o individualismo, impede a formação de uma consciência cívica, favorece o poderio estatal e o surgimento de lideranças populistas, de demagogos que seduzem as massas sequiosas de direção e de esmolas públicas que acalmem suas aspirações.
A sensação que se tem no Brasil de hoje – diante de denúncias gravíssimas que pairam sobre membros do mais alto escalão do governo; da violência urbana, especialmente a relativa ao estado de guerra em que vive a população do Rio de Janeiro, e a do meio rural sob os ataques do MST e suas dissidências; do caos na área da Saúde; do baixo nível da Educação; da ausência de valores que norteiem o curso de cada vida – é que os indivíduos se deixam levar pela correnteza da submissão à manipulação que despersonaliza, massifica, torna todos semelhantes no anonimato, na insignificância, na mediocridade.
Faltam-nos minorias capazes de liderar, de se revoltar com o atual estado de coisas, de transformar a responsabilidade no fermento inovador de um novo patamar de progresso e, porque não, de fazer florescer o belo, o bom e o justo para assim quebrar a vulgaridade da existência atual. E as minorias a que me refiro nada têm a ver com riqueza ou pobreza, mas podem emergir em qualquer classe social, pois suas faculdades superiores de melhores residem no caráter, na essência que os aproxima mais da humanidade que da bestialidade que habita em cada criatura.
A sociedade brasileira fica estarrecida diante dos crimes atrozes devidamente “trabalhados” pela TV. Mas se queda indiferente perante os abusos cometidos pelos governantes. Afinal, os que deviam dar o bom exemplo e não dão são os piores.
Parafraseando Ortega y Gasset: infelizmente, existem algumas cabeças, muito poucas, mas o corpo vulgar do Brasil não quer pô-las sobre os ombros. Pior, o corpo vulgar insiste em manter sobre os ombros cabeças incompetentes, distantes do bem comum, articuladas por vezes com a ilegalidade.
Vários exemplos podem ser citados para confirmarem essa análise, pois se sempre houve escândalos na esfera do Poder Público, nunca se assistiu a tantos de 2003 para cá. Basta lembrar que poucos ministros restam do primeiro mandato do atual presidente da República, sendo que muitos já perderam o cargo nesse segundo mandato por conta da corrupção. Também o Poder Legislativo não se cansa de dar ao povo múltiplos exemplos de como não deve ser um parlamentar. E nem o Judiciário escapou do descumprimento da lei, o que é algo tragicamente irônico.
Entretanto, fiquemos com os fatos mais recentes, que na próxima semana já estarão esquecidos, para confirmar o que está sendo apresentado neste curto artigo:
Em matéria de incompetência governamental tivemos dois episódios marcantes. O primeiro foi relativo à atuação do chanceler Celso Amorim, que mais uma vez trabalhou com denodo para conduzir ao fracasso a Rodada de Doha. Pior, o Brasil saiu como traidor do Encontro, portanto, mal visto na esfera internacional.
O segundo está ligado à audiência pública convocada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro e pelo secretário Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, com o objetivo de pedir a condenação de militares que, segundo estes senhores, estariam envolvidos em práticas de tortura durante o governo militar e, assim, não poderiam ser beneficiados pela lei da anistia. Com sua atitude estes membros do governo causaram constrangimento até aos companheiros de seu próprio partido, o PT e, segundo consta, ao próprio presidente da República. Mas este não cogitou em dispensar o ministro e o secretário, como não pensou em destituir do cargo o colecionador de perdas, Celso Amorim.
Outro fato bastante grave foi a denúncia feita pela revista colombiana Cambio sobre as ligações de membros importantes do governo brasileiro e muito próximos ao presidente da República, com as Farc, bando composto por bestiais narcotraficantes, criminosos da pior espécie que estão sendo derrotados pelo presidente Álvaro Uribe.
Provavelmente tudo isso estará esquecido na semana que vem, pois com mostrou Ortega y Gasset, “a política se apressa em apagar as luzes para que todos os gatos fiquem pardos”. E isso não diz respeito só aos políticos. Sem a revolta das minorias todos nós ficamos pardos.
Maria Lúcia Victor Barbosa
Graduada em Sociologia e Política e Administração Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em Ciência Política pela UnB. É professora da Universidade Estadual de Londrina/PR. Articulista de vários jornais e sites brasileiros. É membro da Academia de Ciências, Artes e Letras de Londrina e premiada na área acadêmica com trabalhos como "Breve Ensaio sobre o Poder" e "A Favor de Nicolau Maquiavel Florentino". Criadora do Departamento de Desenvolvimento Social em sua passagem pela Companhia de Habitação de Londrina. É autora de obras como "O Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto: A Ética da Malandragem" e "América Latina: Em Busca do Paraíso Perdido".
Site: www.parlata.com.br
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