Publicado originalmente em Díário do Comércio em 13/08/08
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Em Reconstruindo a Rússia , publicado quando a União Soviética estava à beira do colapso, Alexander Solzhenitsyn escreveu que "o despertar da autoconsciência nacional russa tem sido, a longo prazo, incapaz de livrar a Rússia da idéia de super potência e de delírios imperiais. Tomou conta dos comunistas a noção falsa e forçada do patriotismo soviético". Como todas declarações proféticas, era uma leitura sagaz do presente, não do futuro. A invasão russa à Geórgia é poderosa confirmação das palavras de Solzhenitsyn.
Obviamente, pode-se reverter sua argumentação: o imperialismo soviético era uma continuação, não um antecedente, do nacionalismo russo. Vladimir Putin e seu lacaio, o presidente Dmitry Medvedev, reviveram a tradição de expansionismo russo que data a Ivã, o Terrível . A invasão da Geórgia ecoa a anexação russa daquela país em 1801 e novamente em 1921, quando os soviéticos esmagaram uma independência georgiana de curta duração.
Isso tem pouco a ver com proteger os ossetianos do sul, que há poucos anos estavam lutando pela independência tanto da Geórgia quanto da Rússia. E tem pouco a ver com o nítido erro de cálculo do presidente georgiano, Mikheil Saakashvili, ao responder a última provocação da Ossétia do Sul tentando garantir o controle militar daquela região. A Rússia estava planejando isso há algum tempo, como ficou demonstrado pela espantosa eficiência do ataque, com alvos bem além da Ossétia do Sul e da Abkhazia, outra região rebelde, e mobilizando sua frota do Mar Negro.
Seria um erro grosseiro achar que a casus belli possa ser relacionada a ações do Ocidente, como o reconhecimento da independência de Kosovo em detrimento dos sérvios aliados da Rússia ou a pressão da Otan por um sistema antimíssil na Europa Central. Mas esses movimentos imprudentes, por causa da psicologia dos líderes de Moscou, não vieram antes do surgimento do nacionalismo pós-soviético na Rússia.
Bem ao contrário: a expansão externa de Moscou é a continuação lógica do regime autoritário doméstico, que Putin está consolidando há algum tempo com a ajuda do dinheiro abundante do petróleo e do gás natural.
Primeiro, Putin conseguiu que as frágeis instituições democráticas de seu país fossem substituídas por organizações autocráticas. A maioria do sistema de fiscalização foi neutralizada: o Judiciário, partidos políticos, governos locais, a mídia, empresas privadas, regiões separatistas.
As forças de segurança, a Igreja Ortodoxa e a indústria energética se tornaram os pilares do novo regime. Os dois primeiros, já com os pés no nacionalismo russo, precisaram de poucos expurgos. O setor energético exigiu algum trabalho, essa é a razão pela qual a gigantesca empresa Yukos quebrou e sua subsidiária de petróleo foi englobada pelo governo, como foi a Gazprom , a maior produtora de gás natural do mundo.
Uma vez que o controle do Kremlin foi estabelecido, havia pouco o que se pudesse fazer sobre o expansionismo russo. A Europa importa grande quantidade de gás natural e de petróleo da Rússia. A ameaça de reduzir ou interromper os fornecimentos - por exemplo, ao interromper o embarque pela Ucrânia, uma importante rota -, serviu como chantagem à União Européia.
A Rússia gostaria de ter em suas mãos tudo que fica entre o Báltico e o Cáucaso (além disso, seu grande vizinho ao sul, o Cazaquistão, governado por uma tirania sentada no petróleo, já um grande amigo de Moscou).
Mas há alguns obstáculos, incluindo o fato que o Báltico e a maioria dos Balcãs faz parte da União Européia e da Otan. O que deixa a Geórgia e a Ucrânia - cujas revoluções em 2003 e 2004 foram vistas com uma poderosa declaração dos valores ocidentais na região que a Rússia considera como seu quintal - como os alvos mais fáceis.
Os nacionalistas russos, que são impetuosos mas não loucos, sabem muito bem que a Europa Central está fora do alcance, mas eles poderiam minar seriamente esses países se controlarem o vizinho de porta deles, a Ucrânia. E a Geórgia ainda lhes daria controle da rota entre o Mar Cáspio e o Mar Negro, o que quer dizer o Mediterrâneo.
O que temos visto na Geórgia, nos últimos dias, é nada menos do que a decisão perfeitamente racional da Rússia em dar um passo adiante no nacionalismo renascido do país.
É importante entender essa realidade, agora que o debate sobre isolar, se aliar ou ignorar a Rússia deve começar a ficar mais sério no Ocidente.
Em 1990, Solzhenitsyn - ele próprio um tipo de nacionalista russo - escreveu que "deve ser dito bem alto ... que ... a Transcaucásia será separada inequívoca e irreversivelmente" da Rússia. Imagino o que ele estaria pensando da decisão de seu amigo Putin, para provar que ele estava equivocado.
Publicado pelo Diário do Comércio em 13/08/2008
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