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05/08/2008

a essência do ciúme


















Mario Guerreiro
Quem sente ciúme de alguém expressa, para quem sente, um grande medo de perder quem ama; expressa, para o bom observador, possessividade e insegurança; finalmente, para quem é o objeto das manifestações ciumentas, tanto pode expressar algo desejável: ser alvo da intensa paixão de outro, como algo indesejável: ser demasiadamente solicitado, sufocado por alguém que não concede nenhum espaço, cerceado em suas legítimas liberdades de ir e vir e de se relacionar com quem bem entende, e às vezes até mesmo de se relacionar consigo próprio em momentos de solidão propícios ao reencontro com sua indevassável, porém cerceável, intimidade.

Uma coisa é certa: o ciumento pode acabar possuído por uma paixão incontrolável. Pode ser criticado por estar amando de uma forma errada, mas jamais por ser indiferente a quem diz amar intensamente. E esta talvez seja a razão de ser da analogia popular: “Ciúme é que nem pimenta: em dose pequena é bom; mas em dose forte estraga tudo”. De fato, um pouco de ciúme pode ser encarado como uma coisa natural em quem ama e até apreciado por quem é amado, porém o ciúme exagerado só pode ser visto como algo doentio produzindo más conseqüências para o alvo do enciumado e piores ainda para ele próprio.

A serpente de olhos verdes poderia ter olhos azuis ou castanhos - pois não há nenhuma evidência científica capaz de fundamentar a crença de que o portador de olhos verdes é ciumento por natureza - mas se trata certamente de uma serpente peçonhenta. O ciúme é um terrível veneno, que age lentamente contaminando a alma de quem é por ele infectado.

O caráter gradual da referida contaminação, bem como a possessividade e a insegurança motivadoras desse tipo de sentimento, foram magistralmente caracterizadas por Shakespeare em seu drama Othello. O Mouro de Veneza passa por um processo que o leva de pequenos ciúmes a um ciúme doentio e avassalador cujo desfecho – resultado final de uma crescente e injustificada falta de confiança em sua esposa, Desdêmona, e de uma adesão cada vez mais forte às intrigas de Iago - fizeram com que ele acabasse sufocando a quem amava com um travesseiro de seu próprio leito de amor.

De fato, o ciúme é sufocante: a asfixia produzida por ele sempre começa no sentido figurado, mas pode acabar no literal - como de fato ocorreu em Othello. [No Brasil, dizem que a coisa se resume a duas interjeições: começa no “ôba, ôba” e acaba no “êpa! êpa!”].

Entre outras coisas, não escapou do olhar aguçado do Bardo de Avon – perto de quem Freud não passava de um pigmeu - o estado de fragilidade emocional, que costuma se intensificar juntamente com o crescimento do ciúme. Tal fragilidade faz com que o ciumento torne-se cada vez mais vulnerável a intrigas.

Sob a pretensão de estar alertando um amigo de uma possível traição, o intrigante na realidade bota mais lenha no fogo lento e devorador que consome a alma do enciumado. Sua confiança nas insinuações do pérfido intrigante cresce à medida que decresce a depositada na pessoa amada. Ele acaba se sentindo naquela situação de que “quem sabe menos das coisas sabe muito mais que eu”.

E a perspectiva de ser olhado por outros homens como portador de chifres - ainda que na realidade não os tenha adquirido e provavelmente não os venha a adquirir - torna-se uma terrível ameaça à sua honra como macho. Um conhecido provérbio acentua o caráter desonroso do homem traído, bem como o caráter freqüente de tal coisa: “ Se tutti i cornuti portaseno lampioni, mamma mia, ch’illuminazione!”. (Se todos os cornudos levassem lampiões, nossa, que iluminação!).

Não sabemos dizer se o ciúme é mais freqüente nos homens ou nas mulheres -provavelmente, apresenta a mesma freqüência em ambos os sexos. Não sabemos dizer se o medo de ser traído é mais freqüente nos homens ou nas mulheres - quase com certeza trata-se de um temor peculiar ao ser humano, pois a possessividade e a insegurança parecem desconhecer diferenças genitais. Mas uma coisa é certa: para os homens em geral, trair é motivo de orgulho; ser traído, de vergonha.

Para as mulheres em geral, trair é uma forma de vingança; ser traída, uma desonra não levada em consideração pelo macho, pois séculos e séculos de cultura machista - e neste particular temos de concordar com as feministas - sedimentaram uma condição unilateral em que a honra de um homem ficou localizada entre as pernas de uma mulher, mas a dela não ficou entre as dele.

Diziam os antigos provérbios: “Coração de homem é que nem estribo de bonde: sempre tem lugar para mais um” [ou seja: “mais uma”] e “ Trair e coçar é só começar”. Isto pode não ser verdade em relação a alguns, mas parece ser em relação à maioria.

Na cultura tradicional dos nossos avôs e dos avôs deles, considerava-se que o homem ter várias mulheres era algo plenamente aceitável: sinal da virilidade de um insaciável conquistador; mas a mulher ter mais de um homem, algo decididamente inaceitável: sinal de furor uterino estigmatizado como caráter de reles mundana. Por isto mesmo, se admitia que o homem traído, quando matava a traidora, agia em “legítima defesa da honra”; mas se a traída matasse seu traidor, geralmente o júri a condenava por homicídio doloso, quando muito reconhecendo a atenuante de ter agido sob forte comoção.

Isto não se devia ao fato de, na composição, do corpo de jurados ter mais homens do que mulheres, pois o fato dele ter membros do sexo feminino não constituía nenhuma garantia de que as mulheres não pensassem como os homens, para estar de acordo com a mentalidade vigente em que eram vistas como seres não-pensantes, que - tal como a Lua - careciam de luz própria e se limitavam a refletir a do Sol.

O ciúme pode causar transtornos e pode até matar, mas quem mata nunca ama aquele que mata, a não ser que queiramos dar a “amor” o péssimo nome de “vingança cruel” - quase sempre motivada por grandes insegurança e possessividade. Tanto a mulher como homem podem ser levados a matar por ciúme, mas na traição parece haver uma diferença.

Por questões de educação ou de caráter cultural, ou mesmo pelas diferenças dos modos de ser de cada sexo, o homem costuma trair para afirmar sua masculinidade ou para satisfazer um poderoso desejo de variação, mais raramente para se vingar de algo que sua mulher tenha feito[a não ser se ela o tiver traído antes]. Por sua vez, a mulher pode trair por se sentir insatisfeita, sexual ou afetivamente, com seu homem, mas geralmente faz tal coisa para se vingar dele, principalmente quando ele a traiu primeiro.

Contudo, o ciúme não ocorre somente no relacionamento amoroso e não tem necessariamente como desfecho a traição. Um irmão pode sentir ciúme de outro por considerar que seus pais dão mais atenção ao outro. Pode ocorrer que eles ajam assim, mas, mesmo que concedam um tratamento igual aos seus filhos, isto não impede que um deles se sinta enciumado do(s) outro(s), pois o que está realmente em jogo não é necessariamente o que os pais fazem, mas sim como o(s) filho(s) reagem diante do que fazem, e sua reação depende bastante do seu grau de exigência de atenção e da sua demanda de afeto. E isto evidentemente varia bastante de um indivíduo humano a outro.

Quando uma criança de uns cinco ou seis anos ganha um irmãozinho, o ciúme é quase certo, pois o primogênito deixa de ser filho único, deixa de ser o centro das atenções dos pais e dos parentes mais próximos, e se sente ameaçado por seu irmãozinho na competição pela atenção e pelo afeto dos pais. À exceção de casos mórbidos, isto não leva a criança enciumada a matar seu irmão, mas pode a levar a hostilizá-lo e maltratá-lo.

O ciúme entre irmãos é um tópico clássico na literatura, desde Cástor e Pólux na mitologia grega, Jacó e Essaú na Bíblia, etc. Neste caso, não há o ingrediente do amor sexual de um homem por uma mulher, como no caso do amor de Othello por Desdêmona, mas há os mesmos motivos básicos mobilizando o comportamento do enciumado: possessividade e insegurança, a essência do ciúme.
















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